Mestre em Direito e Historiador
A ideologia liberal possibilitou durante a República Velha a manutenção do modelo colonial agro-exportador institucionalizado através da Constituição de 1891 resultando, a crença fundamentalista liberal, em nosso trágico atraso industrial, tecnológico e demográfico. Este quadro não passou despercebido por diferentes membros da elite política dos primeiros anos do século XX possibilitando o surgimento de uma sólida corrente nacionalista fundamentada – principalmente – no modelo defendido por Friedrich List ainda no século XIX cujos princípios foram aplicados nos Estados Unidos e Alemanha dos tempos da unificação.
No Brasil durante a República Velha destacavam-se como adeptos do modelo nacionalista Arthur Bernardes, João Pandiá Calógeras, Monteiro Lobato defendendo estes – com diferenças pontuais – imediata industrialização financiada a partir do capital nacional quebrando, deste modo, a tradição exportadora mineral e agrícola.
A crise econômica mundial iniciada em 1929 contribuiu para expor a tragédia de nossa dependência da exportação de produtos primários possibilitando o aprofundamento do debate em torno de uma proposta nacionalista tendo este aspecto o acréscimo da divisão política das oligarquias e instabilidade ocasionada por militares revoltosos desembocando este caldo no movimento revolucionário chefiado por Getúlio Vargas em 1930.
Ocupando o poder Vargas lidera a modernização do Estado brasileiro, mas em função de complexas alianças políticas reunindo diferentes escolas econômicas observa-se no interior do governo acirrada disputa entre os defensores da ampliação do poder de intervenção estatal e aqueles propositores do modelo regulador defendendo estes o poder de intervenção estatal como forma exclusiva de atingir o mercado “ideal” oferecendo deste modo ampla liberdade ao capital nacional ou internacional.
A legislação trabalhista surge neste contexto apresentando elementos claros de intervenção na tradicional liberdade do patronato em estabelecer o salário de sua conveniência aliado as longas jornadas de trabalho desconsiderando o direito ao descanso remunerado, férias, afastamento por motivo de saúde, trabalho do menor dentre outros. Por outro lado a legislação trabalhista, em nome da normalidade e superação da luta de classes, criou um atrelamento dos sindicatos ao governo destituindo estes de sua condição classista apresentando como subproduto o peleguismo praga ainda verificada em nossos dias.
Entretanto considero importante observar a longa duração da aliança entre Getúlio Vargas e trabalhadores mantida, inclusive, após o seu afastamento do poder em 1945 garantindo ao ex-ditador o retorno democrático em 1951. Esta volta ao poder não ocorre sem os embaraços aliancistas verificados no período entre 1930 e 1945, todavia Vargas aparenta maior clareza quanto ao modelo econômico a ser adotado cercando-se – inicialmente – de jovens lideranças nacionalistas a exemplo de João Goulart ocupante do ministério do trabalho e Celso Furtado ocupante de cargos técnicos na área do planejamento.
Deste núcleo nacionalista surgiu a primeira crise do governo Vargas quando o ministro João Goulart anunciou sua intenção em dobrar o valor do salário mínimo que ficara praticamente congelado durante o governo Dutra. O projeto foi duramente criticado, inclusive no interior do governo, ocasionando a demissão do ministro do trabalho afinal fortalecer o mercado interno permanecia aos olhos da elite econômica nacional um grave pecado o ideal, para estes, seria um consumo reduzido direcionando as energias para a exportação de minérios e produtos agrícolas reservando aos detentores do capital o consumo de artigos de luxo importados ficando os trabalhadores com o mínimo necessário e carregando nas costas este fardo de sustentar as excentricidades coloniais.
Comprometida até a raiz do cabelo com o modelo agro-exportador esta mesma elite econômica tratou de minar o projeto de auto-suficiência energética presente na proposta popular de criação de uma empresa petrolífera brasileira. Getúlio Vargas, mais uma vez contrariando interesses destes grupos, assumiu a reivindicação presente na campanha O PETRÓLEO É NOSSO assinando em 1954 a lei 2004 criando a PETROBRÁS.
Desta vez não havia perdão. O ato do presidente assinalava o rompimento com a tradição colonial, desestabilizava a política dos oligopólios internacionais sustentadas através das generosas verbas de publicidade guarnecidas por canhões estadunidenses e ingleses.
Derrubar Vargas tornou-se a palavra de ordem dos setores conservadores amplamente difundida na grande imprensa. O agravamento da crise ocorre após o assassinato do Major Rubens Vaz durante o atentado contra Carlos Lacerda aumentando, a imprensa conservadora, a ferocidade dos ataques exigindo a renúncia de Getúlio Vargas a quem atribuíam o mando do crime baseados em investigação direcionada por oficiais oposicionistas da Aeronáutica.
O desfecho da crise ocorre na manhã de 24 de agosto de 1954 quando Vargas desfere um tiro contra o próprio peito. A grande imprensa comunica o fato a carta testamento ganha as ruas e transforma-se em bandeira mobilizando pessoas em todo território nacional. Multidões querem vingança e atacam as sedes de jornais e rádios, invadem a embaixada dos Estados Unidos e tudo mais associado a campanha contra Getúlio Vargas.
O mito de Vargas, portanto, nasce de uma revolta popular inspirando ao longo do tempo novas ações partindo da nacionalização das empresas de telefonia e eletricidade promovidas por Leonel Brizola quando governador do Rio Grande do Sul, as Reformas de Base do governo João Goulart, a resistência contra a desnacionalização econômica durante a ditadura militar, a introdução na Constituição de 1988 do monopólio do petróleo. Ao mesmo tempo verificam-se articuladas as forças conservadoras através da chamada flexibilização econômica iniciada com Fernando Collor e ainda hoje mantidas notadamente no setor do petróleo buscando a todo custo a transformação do Brasil em simples fornecedor de matéria prima ou, utilizando um termo atual, commodities.